Sambas sem enredo – Análise do Instituto Teotonio Vilela
Carnaval é, por excelência, lugar da sátira. Em certos momentos, o tom mais ácido se aviva e ganha ares de protesto. Vindas daquela que é tida como “mais autêntica” manifestação popular, as críticas acabam sendo saudadas como se fossem a apoteose da verdade. Nem sempre se justifica, contudo, e não estão imunes a serem utilizadas pelos interesses dos que mais mal fizeram aos brasileiros.
Escolas de samba poderosas e blocos de rua de todo quilate espalhados pelos quatro cantos do país deram a seus gritos de guerra, nos últimos dias de folia, ares de brados “contra tudo o que está aí”. A crítica a anos de disfuncionalidades que culminaram na maior recessão da história é válida, mas, quando deixa de nominar os bois certos, não só não se presta a transformar a realidade como fica sujeita a ser usada como arma político-partidária, cujo intuito é disseminar ódio e dividir o país.
Em alguns dos sambas-enredo mais celebrados deste ano, a corrupção foi tratada como geleia geral: lambuza a todos indistintamente. Será verdade? Aqueles que protagonizaram os maiores escândalos da nossa história, flagrados e tirados do poder, devem ter adorado: o samba, esse nosso orgulho cultural, igualou a todos na lama, o refrão que eles mais gostam de cantar.
É curioso, para dizer o mínimo, que o ápice da roubalheira flagrada nos anos recentes não tenha obtido das passarelas a mesma atenção que outros malfeitos mereceram neste ano. Não se tem notícia de enredo, samba ou marchinha de sucesso tratando do mensalão, do petrolão, dos tríplex à beira-mar, dos sítios com pedalinhos, das falcatruas com o orçamento federal, da quebradeira que se abateu sobre as contas públicas.
Quando foi mais incisiva e pessoal, a reprovação de escolas de samba organizadas em alas de rigor cronometrado mirou alvos errados. Mistificou, ao invés de esclarecer. As reformas necessárias foram igualadas a mazelas seculares, protestos legítimos foram caricaturados, heranças cartoriais foram retratadas como salvaguarda do povo. A lambança tornou-se generalizada. Carnaval assim não é ótimo para quem não quer mudar nada?
Os brasileiros devem, precisam manter o espírito crítico, a inquietude, a capacidade de se indignar. Mas ela não pode ser meramente genérica, sorrateiramente indiscriminada, oportunamente indecifrável. O mau estado do país tem responsáveis com nome e sobrenome, mas estes ficaram fora do enredo dos sambas que se ouviu pelo país nos últimos dias de folia.
(fonte: ITV)
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