Reflexão
Em discurso, Yeda Crusius fala sobre banalidade do mal em tempos de Lava Jato
A deputada Yeda Crusius (RS) registrou, na Secretaria da Mesa da Câmara dos Deputados, seu pronunciamento do Grande Expediente deste mês de abril. Intitulado “Banalidade do Mal em Tempos de Lava Jato”, o texto trata de uma época em que novos e diferentes desafios se impõem, em sequência acelerada, para os que têm na democracia e na liberdade valores fundamentais e inegociáveis, nas palavras da própria Yeda. Confira a íntegra do pronunciamento:
BANALIDADE DO MAL EM TEMPOS DE LAVA JATO
Vivemos em uma época em que novos e diferentes desafios vão se impondo, em sequência acelerada, para os que, como nós, têm na democracia e na liberdade valores fundamentais e inegociáveis. A democracia está em xeque em todo o mundo (“A Democracia Sitiada”, Sérgio Abranches, FSP, 23/04/2017), e a liberdade está a requerer contornos ampliados nesta era da globalização da informação, internet e das redes sociais.
O nosso país, em particular, vive um período de transformações que considero como uma oportunidade de melhorar o sistema democrático que conquistamos, e que precisa evoluir – e isso é possível. Mergulhados numa crise multifacetada, pois que é crise econômica, moral, social, política, ambiental, os cidadãos e cidadãs brasileiros já tem se manifestado aos milhões nas ruas e nas redes sociais, com suas opiniões e exigências para dar fim à corrupção sistêmica, punindo seus responsáveis, e ao mau uso do dinheiro público, que engole os esforços de políticas públicas fundamentalmente necessárias como educação, saúde, segurança.
Já passamos, muitas vezes, por períodos de turbulências e mudanças que deixaram suas lições. Há quem as tenha aprendido, embora muitos ainda não. Quero referir-me a alguns eventos atuais, como o impeachment da ex-Presidente Dilma, em 2016, motivado por graves infrações à Lei de Responsabilidade Fiscal. E à Operação Lava Jato que, dirigida desde Curitiba pelo Juiz Sergio Moro, desde 2014 investiga desvios bilionários na Petrobrás. Nunca é demais frisar que, na construção da sociedade que queremos, a Lava Jato tem papel importantíssimo. Ela é uma oportunidade ímpar de afirmar as instituições ligadas à Justiça. De sua completude e condução depende muito nosso futuro como país moderno, livre e democrático. No processo de impeachment nasceu o compromisso de fazer as mudanças necessárias para barrar a gigantesca crise no qual o país estava mergulhado. No caso da Lava Jato, o país todo e o mundo assistem pelas TVs o desfile de vídeos de delações premiadas, seja dos donos da Odebrecht seja de seus subordinados, contando como os desvios bilionários da Petrobrás constituíram um sistema de corrupção, como se banais fossem. Aqueles, os donos, dando ordens, e estes, os subordinados, como que simplesmente cumprindo ordens para colocar em operação o sistema de corrupção.
Também no mundo democracia e liberdade têm enfrentado crescentes desafios. E como não somos uma ilha, como fazemos parte de processos globais de crise e de mudanças, o que acontece lá fora, aqui repercute e inevitavelmente nos afeta.
A lista de eventos externos que trago para o tema dos desafios da democracia e da liberdade é imensa. É a emergência do Estado Islâmico (EI); são as crises humanitárias geradas pelo êxodo de milhões de pessoas de países em guerra ou sob o terrorismo, levando à tragédia da migração em massa em direção à União Europeia, transmitida em tempo real por qualquer canal de TV, celular, mídias, internet; são as mudanças em vários países democráticos apontando para o retrocesso que vem se registrando com experiências do tipo bolivariano (Venezuela a mais grave) e árabe (como a guerra na Síria e o plebiscito deste mês na Turquia). Como se tudo isso não bastasse, assistimos agora mesmo à disseminação através da internet, pelo mundo e pelo Brasil, desse terrível jogo, o Baleia Azul, que tem levado um sem número de jovens a se mutilarem até o limite do suicídio.
Todas essas situações, Senhor Presidente, representam um enorme desafio à sobrevivência de instituições democráticas e livres e dos valores que as sustentam. O que acaba, inevitavelmente, por remeter aos estudos sobre a “banalidade do Mal”, da notável Hannah Arendt, e à sua tese central de que contra a banalidade do Mal, não há saída fora da Política. Essa sua grande lição: é a Política o instrumento essencial para a construção da liberdade e da democracia.
Um dos maiores estudiosos do comportamento coletivo como o acontecido durante o nazismo foi Hanna Arendt, filósofa política alemã de origem judaica, autora de “As Origens do Totalitarismo”, 1951. Já nos Estados Unidos, para onde emigrou durante o nazismo a autora publicou “Eichmann em Jerusalém – Um Relato sobre a Banalidade do Mal”, de 1963, a partir de suas observações durante o processo de julgamento desse que ficou conhecido como o “arquiteto do holocausto”. Quis ela entender como é possível que verdadeiras massas de pessoas, as que tem pavor do isolamento social e são capazes de optar por pertencer ao rebanho e assim confundir escravidão e liberdade, sigam tais líderes com devoção e subserviência. Eichmann afirmou durante seu processo que seguia ordens, e como eram ordens deviam ser obedecidas. Cada um da cadeia de “trabalhadores” que promoviam as ações que culminavam no fornecimento de todos os materiais, inclusive humanos, dos campos de extermínios, cada um estaria apenas “cumprindo suas funções”. Mesmo que fossem para construir e operar os campos de extermínio!
De fato, a obra de Arendt tem muito a nos ensinar sobre as questões que hoje enfrentamos. Com efeito, pertence a nossos dias a compreensão desse significante –a banalidade do Mal– . Tal o caso do extermínio de comunidades de cristãos crucificados; dos assassinatos de prisioneiros vestindo uniformes laranja, por degola, transmitidos pelo youtube em tempo real; do lançamento de gays dos telhados de edifícios, todos pelo Estado Islâmico. No Brasil é só observarmos o que acontece no já gigantesco sistema de crime organizado do tráfico de drogas e armas. Provas de fidelidade são exigidas, como degolas, assassinatos ao acaso, chacinas que não distinguem crianças e mulheres dentro de suas casas, destruição de ônibus a partir de comando dos presídios, matança de policiais dentro de seus postos nas cidades, cooptação de crianças para o “negócio do tráfico”, e assim vai.
Mas o que mais importa, o que para mim é o elemento essencial da tese de Arendt, é que o conceito de Banalidade do Mal vem acompanhado pela afirmação de que é somente pela via política –e não fora dela– que é possível o equacionamento das graves questões que de outra forma conduzem ao conflito e, ao fim, aos regimes totalitários. A negação da política, Senhor Presidente, para usar outra expressão de Arendt, é onde se encontra a origem de todos os totalitarismos. (…)
A democracia que temos não é perfeita, disso sabemos. Mas é somente pela política, balizada pela democracia que temos, é por ela e através dela que deve se dar a construção de uma sociedade melhor. É uma falácia pensar que é possível aprimorar a democracia e suas instituições por caminhos não democráticos. A negação da política acaba por ser a negação da liberdade e da democracia.
Assim, é mais do que nunca neces
sário que nós, políticos, trabalhemos para consolidar nossas instituições democráticas, para que sejam fundamento de uma sociedade justa e a garantia efetiva da dignidade pessoal de cada brasileiro.
Minha confiança nas instituições vem de minha própria formação e educação, bem como da minha experiência própria recente. Sendo eu pessoa política, enfrentei vários processos próprios ao jogo político e pude confirmar que as instituições de Justiça funcionam. Cedo ou tarde, mas funcionam e, no meu caso, felizmente mais cedo do que para outros. Embora com alguns problemas e possíveis incorreções por parte de alguns de seus membros, elas sim funcionam. Quero referir os casos mais midiáticos acontecidos durante o meu governo, e pelos quais paguei caro em termos de imagem, de reputação: o do processo criminal conhecido como Operação Rodin, sobre o Detran/RS, de 2007; e o da compra de minha casa, de 2006. Dos dois fui inocentada: no caso da compra da casa, pelo MPE e pelo TCE em 2008, menos de 2 anos depois da abertura da investigação; e, no caso criminal da Operação Rodin, pelo MPF e pelo TRF de Santa Maria em 26/03/2014, 7 anos depois.
Quanto à instituição Poder Executivo, que comandei no RS durante meu governo de 2007 a 2010, a turbulência política vivida no período poderia ter-me feito desacreditar da capacidade de funcionar como requerido, mas então seriam vencedores os que buscam manipular o povo fazendo-o descrer das instituições desde a escola até a igreja e a justiça, e levando-os a se submeterem a um líder ou a uma ideologia.
Fui eleita Governadora do RS com compromissos claros e transparentes, escritos no Plano de Governo de 2006, que seguimos ponto a ponto. Organizado para inverter o histórico déficit público de 40 anos, que esgotara a capacidade de honrar os pagamentos inclusive com o funcionalismo e as leis como a dos precatórios, todas as nossas ações seguiam o método de gestão: objetivos, metas e avaliação. Transparência, responsabilidade, e respeito à lei eram norma de conduta exigida de todos. Enviei por duas vezes à Assembleia Legislativa um Plano de Reestruturação Fiscal do Estado, e por duas vezes ele não foi aprovado. Busquei então alternativas, felizmente bem-sucedidas.
A primeira medida, contando com o inestimável apoio do PGQP –Programa Gaúcho de Qualidade e Produtividade– foi reduzir fortemente as despesas públicas, dando-lhes maior qualidade e, ao mesmo tempo, aumentar receitas por todos os instrumentos disponíveis.
A segunda foi o IPO do Banrisul realizado em 2007, que ampliou o capital do banco público através da venda de novas ações em todo o mundo, o que permitiu a formação dos fundos de previdência pública para dar suporte às mudanças estruturais do sistema previdenciário.
A terceira medida foi o contrato de reestruturação da dívida com o Banco Mundial em 2008, primeiro contrato do banco com um ente subnacional (estado) que permitiu trocar papéis de dívida cara e de curto prazo ´por outros com taxa de juros muito menores e prazos maiores, o que permitiu a formação de um saldo para financiar o governo vindo de prestações menores da dívida pública. É exatamente o que se busca para o Brasil de hoje, e para os estados em quase falência, como mostra o Plano de Reequilíbrio Fiscal em discussão no Congresso Nacional para os estados (RJ, MG e RJ) que decretaram Emergência Fiscal, e não conseguem sequer pagar a folha do funcionalismo a cada mês. Mostrei, em meu governo, contra todos os prognósticos, que o equilíbrio fiscal é possível, e que é bom para todos, pois com o déficit zero melhoraram todos os indicadores econômicos e sociais.
Volto à questão central deste Grande Expediente.
Em notável artigo publicado no jornal Folha de São Paulo de 16 de abril último, o ex-presidente do STF, condutor do processo do Mensalão, o eminente ministro Carlos Ayres Britto, alertou que é indispensável que se separe o joio do joio, separando crimes mais ou menos graves, nos processos em andamento na Laja Jato como de resto em qualquer procedimento judicial. Com a devida vênia do Ministro, é sim necessário separar o joio do joio, mas –e ela mais do que ninguém sabe disso – é igualmente importante separar o joio do trigo. Porque, Senhores Deputados, felizmente ainda há trigo na política brasileira. Muito trigo! Muito, mas muito mais trigo do que joio, ou o colapso decorrente da crise, se tivesse continuidade, teria acontecido.
Citando fatos do Executivo de meu período: trigo é o Déficit Zero, alcançado em 2008 em meu governo no RS; joio foi a opção pela volta do déficit público em proporções significativas no governo seguinte, e que levou o estado a esta situação de penúria atual.
Trigo é o IPO do Banrisul que ampliou o valor do banco na Bolsa de Valores, e permitiu ao banco não apenas assumir o pagamento da parcela da dívida extra limite que se soma à parcela do contrato de 1998 para ficar com o banco público. Mas também melhorar as condições de crédito em todos os setores.
Trigo é o contrato firmado com o Banco Mundial em 2008, fato mundial por ser o primeiro contrato do banco com um ente subnacional. Joio é o aumento insustentável da dívida pública por déficits sequenciais.
Trigo é a viabilização da revolução do Plástico Verde concluído pelo meu governo na planta do Polo Petroquímico de Triunfo, de onde surgiu a invenção com patente mundial do próprio Plástico Verde reconhecida no período. O valor ambiental dessa inovação tecnológica é incomensurável!
O Plástico Verde é produto biodegradável produzido a partir da cultura da cana de açúcar, setor de porte em nosso país. Através do Programa de Incentivos Fiscais, além da qualidade diferenciada de meu próprio estado, disputei e ganhei em nome do RS a planta que todos os estados e, mesmo, países desejavam. A empresa decidiu pelo nosso estado, pelo Polo Petroquímico de Triunfo, por razões empresariais. Eu decidi pelo gigantesco valor ambiental, reconhecido em todo o mundo. Foi a primeira planta mundial de produção de plástico biodegradável a partir da cana de açúcar! Assim como a decisão dessa planta, a de produção de centenas de outras empresas beneficiadas pelo incentivo fiscal do mesmo programa de atração de investimentos permitiram que o crescimento do PIB e do emprego de 2007 a 2010, mesmo em plena crise mundial, fosse significativo durante todo o período. Essa foi a decisão de governo, essa foi minha intenção transparentemente escrita no meu plano de governo apresentado durante as eleições de 2006, vitoriosas. Somada à própria vocação do estado para receber tal investimento, de R$ 1 bilhão à época, a aplicação do Programa de Incentivos Fiscais permitiu vencer a disputa com o resto do mundo. Como ilustração da importância de tal investimento quero citar:
– Plástico Verde produzido no RS é usado por astronautas;
– Empresa japonesa começa a utilizar plástico verde produzido no RS;
– Plástico Verde dá prêmio de sustentabilidade para o Boticário em Paris;
– O valor ambiental dos milhões em sacolas de plástico biodegradável que diariamente são fornecidas pelas cadeias de supermercado do estado e do país.
Por o
portuno, registro que estou solicitando junto à Secretaria da Fazenda o processo de concessão de incentivos à cadeia produtiva da química e do plástico, bem como o específico caso da produtora do Plástico Verde, Braskem, para depositá-los junto aos responsáveis pela investigação da Operação Lava Jato.
Defensora que sempre fui da Reforma Tributária, que avança aqui na Câmara dos Deputados sob a liderança do Deputado Hauly, estarei realizada quando a guerra fiscal patrocinada pelas distorções do atual sistema fenecer pela mudança das regras que hoje levam a essa guerra. O RS vivenciou os resultados dela quando o setor de calçados foi em grande parte transferido ao nordeste, pela redução do ICMS patrocinado por aqueles estados. Outros estados e outros setores têm o registro dos impactos da guerra fiscal na sua história. Há décadas estamos no Congresso Nacional buscando eliminar as distorções do atual sistema tributário, simplificá-lo, tornar o sistema mais eficiente dentro do federalismo que, hoje, tem concentrado os recursos fiscais nas mãos da União, impedindo que estados e municípios tenham autonomia e responsabilidade de decidir pelos seus caminhos de desenvolvimento. Enquanto essa reforma não for finalizada não estará completada a mudança a favor de um maior equilíbrio federativo, fonte de muitos conflitos distributivos no país.
O meu compromisso com as reformas (em discussão hoje: tributária, política, trabalhista, previdenciária), e creio, o do Governo Temer que veio com compromisso explícito durante o processo de impeachment, é enfrentar as distorções que levam inclusive a comportamentos corporativos de um tempo que já não existe, atrasando o necessário ajuste para tirar o peso da ineficiência e da malversação dos recursos públicos dos ombros das próximas gerações. Como mostra a situação dos estados em Emergência Fiscal, os quais apenas antecipam o que acontecerá no país se as reformas não forem feitas, chegamos ao limite!
Finalmente, quero reafirmar, com Hannah Arendt, a minha crença na política como instrumento para se chegar, na prática, a um sistema onde os valores da liberdade e da democracia estejam presentes. Há, sim, valores inegociáveis. Dentre esses, sem dúvida o mais importante é o da permanente busca da Verdade, fim último da promoção da Justiça. Lembremo-nos que a própria Hannah Arendt, parte da comunidade judaica, alertou para que os processos em Israel contra os carrascos nazistas deveriam servir à Justiça e à Verdade, jamais à Vingança.
Tenhamos sempre presente que Verdade que é objeto de comércio deixa de ser a Verdade pura, é mera mercadoria esvaziada de seu conteúdo moral e ético que facilmente se torna instrumento de interesses pessoais por vezes os mais indignos. É o que ocorre, por exemplo, no mercado da destruição de reputações em que se permite quem com ele lucre. Negociando-se a verdade facilmente passa-se a tomar como verdadeira a própria mentira, a dizer que é verdadeiro o que é simplesmente falso, para que se gere benefícios para o mentiroso ou seus superiores. Conspirar e ser ator no mercado de destruir reputações de terceiros ou de opositores políticos é fazer da verdade, da dignidade e da honra das pessoas as primeiras e maiores vítimas.
Separar o joio do joio, e o joio do trigo, conservando os valores da Justiça, da Verdade, da Liberdade e da Democracia: este é nosso grande desafio como sociedade através das nossas ações de nossas instituições. Desafio que, estou segura, conseguiremos vencer se soubermos, com Hannah Arendt, reafirmar e valorizar a Política como o principal instrumento para a construção da sociedade que queremos.
Muito obrigada
(Da assessoria da deputada/foto: Alexssandro Loyola)
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