Chegou a hora de aprovarmos a Lei Muwaji, por João Campos


A atividade parlamentar muitas vezes oferece a nós, deputados e senadores, oportunidades únicas de pensar o processo normativo e efetivar direitos que são negligenciados.  Não raro, o legislador é obrigado a tomar partido e se definir – mesmo nas questões mais complexas e polêmicas em que o Poder Executivo se revela descuidado.

No final do último mês, as bancadas que defendem o direito à vida aprovaram projeto de lei nº 1.057/2007, de autoria do ex-deputado Henrique Afonso, que visa impedir o “infanticídio” de crianças indígenas em razão de práticas tradicionais das tribos a que pertencem.

Trata-se de defesa da integridade das tribos brasileiras e também daqueles componentes ameaçados por específicas e nocivas práticas culturais autóctones. É de conhecimento público que existem relatos de tribos cujo costume cultural orienta familiares a se desfazerem dos filhos que nascem doentes, ou são gêmeos ou mesmo de idosos mais debilitados.

Se tais práticas são remotas ou raras, como insistem alguns, é outra questão. Os deputados formaram convicções por meio de relatos convincentes e realistas de índios e testemunhos de integrantes das comunidades. Não generalizamos que índios matam crianças, mas reiteramos que existem relatos e indícios de práticas nocivas aos vulneráveis, por parte de determinadas etnias.   

Por isso propomos a inovação legislativa a partir da inclusão do artigo 54-A na própria Lei 6.001/73, que instituiu o Estatuto do Índio. Com a nova redação, a norma oferecerá mecanismos que garantam proteção à vida e à integridade física e psíquica das crianças, adolescentes e vulneráveis indígenas. 

Trata-se de proposta madura que foi construída ao longo dos últimos anos a partir de inúmeras contribuições, debates e reflexões.

Durante as discussões com a sociedade, o projeto recebeu o nome de Lei Muwaji, em referência a uma mãe da tribo suruwahas que fugiu da aldeia com única e exclusiva intenção de salvar a vida da sua filha. Inicialmente foi acolhida pela psicóloga Márcia Suzuki, numa base da JOCUM, e depois transferidas para Brasília onde passaram a receber toda assistência. Aos que insistem em dizer que inexistem casos de homicídios em aldeias, sugerimos procurar por Muwaji Suruwahá e sua filha que nasceu portadora de paralisia cerebral.

O projeto foi aprovado na forma de uma emenda que apresentei no Plenário e que foi acolhida pelo relator, deputado Marcos Rogério (PDT-RO), que o aperfeiçoou ao dispor que os órgãos responsáveis pela política indigenista devem usar de todos os meios disponíveis para proteger a vida das crianças, adolescentes, mulheres, pessoas com deficiência e idosos indígenas.  Tal defesa inclui o amparo por meio de programas de saúde e total atenção à integridade física dos integrantes das tribos.

Quando entrar em vigor, a lei permitirá também o combate do infanticídio ou homicídio, o abuso sexual ou estupro individual ou coletivo dentro das tribos. Da mesma forma, impedirá a escravidão, práticas de tortura e o abandono de vulneráveis.

Na prática, a Câmara dos Deputados entendeu a complexidade dos direitos humanos e – antes tarde do que nunca – compreendeu que eles são universais.  Após anos de discussões, entendemos que negar o direito à vida com base em uma tradição cultural seria inaceitável e profundamente injusto dentro dos princípios gerais de Direito e Justiça.

Os direitos humanos não devem, portanto, ser privilégios de poucos, moradores de áreas urbanas e regiões metropolitanas. É um direito transformador e que acima de tudo garante o exercício da vida para todos. 

Na Câmara dos Deputados, o entendimento dominante diz que o direito à diversidade cultural deve ser limitado quando se choca com o direito à vida.  Antes que sejam externados argumentos de que a norma tenha vocação etnocentrista e seja desrespeitosa com  comunidades indígenas, faço questão de lembrar que se exige apenas maior atuação dos órgãos de estado para fazer valer os direitos de cada membro das comunidades.  

A aprovação do projeto de lei nos leva a pensar: as tradições culturais não são justificativas para tortura, escravidão ou imposição de penas cruéis. 

A proposta, isto sim,  chama a atenção de órgãos como a  Funai, que podem e devem agir para impedir às agressões contra os mais vulneráveis, e da Funasa responsável pelas ações de assistência à saúde.

É importante lembrar que em determinado momento legislativo durante o nazismo, na Alemanha, o Estado permitiu um crime étnico e declaradamente aviltante. Em 9 de março de 1943, o aborto estava liberado aos integrantes do país,  exceto o povo alemão. Com a lei do ministro da Justiça do Reich foi possível perceber que o intuito da regra, na verdade, era extirpar o povo judeu, negros e estrangeiros da Alemanha e preservar apenas os alemães.

Não é possível que mais de 80 anos depois tenhamos prática semelhante no Brasil: aos nacionais e ‘civilizados’, garante-se os direitos humanos e uma lei para proteção da vida. Aos demais, especialmente os índios, outra norma, em que a garantia da vida é encarada como cultural e desnecessária.   

Acreditamos que os valores da cultura e tradição não se sobrepõem ao valor vida. Com este projeto lei, agora no Senado, que certamente o aprovará também, vamos dar voz àqueles que não têm voz para se defender.  

(*) João Campos é deputado federal (PSDB-GO). (foto: Alexssandro Loyola)

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12 novembro, 2015 Artigosblog Sem commentários »

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