Os reis também morrem, por Fernando Henrique Cardoso


Num dos sábados do mês de setembro encontrei tempo e motivação para escutar a Orquestra do Estado de São Paulo (OSESP), sob o comando do maestro Isaac Karabtchevsky, tocar os Gurre-Lieder de Arnold Schönberg. Com a força expressiva do autor, os versos novecentistas do dinamarquês Jens Peter Jacobsen, traduzidos para o alemão por Robert Franz Arnold, ganham uma dramaticidade wagneriana. Dizem os entendidos que, ademais de Wagner, os acordes transpiram também a Mahler. Não saberia avaliar. O que senti, especialmente quando os instrumentos entoaram sons de uma marcha fúnebre, foi o inevitável da morte e a angústia dos próximos que ficam. Esta sensação talvez me viesse porque a última vez que fui à OSESP em sua companhia Ruth teve a crise cardíaca que, dias depois, terminou sendo fatal. Estive a recordar o tempo todo que em setembro ela faria 85 anos.

O rei Waldemar, no poema, chora a morte de sua amada e diz: “Mas, Tove está aqui e está lá, está tão perto e está tão longe”. Revolta-se contra os próprios deuses e proclama: “senhor Deus, teus exércitos de anjos cantam sempre tua glória; entretanto, o de que necessitarias era de um anjo que te soubesse censurar. Mas quem se atreveria?”.

Da angústia existencial da morte concreta, a dos mais próximos e a própria, passei a pensar na morte política para não me afligir ainda mais. Grave e grande problema: como passar de uma situação de poder a outra? Os reis podem abdicar e assim, sem morrer, renunciam ao poder. Penam em vida, eventualmente, a ausência do poder. Agora, até os papas renunciam; devem rezar na paz de Castel Gandolfo pelo êxito do sucessor. No parlamentarismo são os deputados que, formando uma nova maioria, ora ressuscitam o primeiro ministro moribundo, ora simbolicamente o decapitam, escolhendo outro. No presidencialismo o eleito, em tese, deve esperar que o tempo se esvaia até que o povo escolha novamente um “rei”. O anterior, bom grado, mal grado, sobrevive fisicamente, ora tentando voltar ao trono, ora conformado com o que já fez; ora ajudando o sucessor a governar, ora atrapalhando-o.

Às vezes, entretanto, não há sucessão à vista e o rei já não governa. Quando o Presidente, no caso de República democrática, agride a Constituição, ainda sobra o remédio do impedimento, uma espécie de morte assistida. Ou então ele abre mão voluntariamente do poder pela renúncia. O tema, na ciência política, sem ter a dramaticidade do Gurre-Lieder, é sempre tratado com circunspecção e interesse. Não por acaso voltou à baila em algumas repúblicas presidencialistas contemporâneas o discutível instituto do recall: a velocidade da vida e dos meios de comunicação tornam precocemente envelhecidos governos democraticamente eleitos. Estamos diante dessa encruzilhada. Trombetas, trompas e fagotes já entoam o final, falta apenas a percussão dos címbalos para que todos saibam que o rei morreu. Este, entretanto, detém o poder e não encontra alguém, como o anjo que Waldemar queria que se atrevesse diante do próprio Deus, para dizer-lhe: acabou!

Por enquanto, falei no figurativo. Mas vamos aos fatos. O povo, não vê no ajuste financeiro a glória futura, mas sim o aperto cotidiano. Os programas e promessas são palavras que a experiência mostrou natimortos pela inércia da administração ou por sua incompetência. Os políticos já não sabem quantos mais anéis pedir à Presidente para cumprirem o que, em princípio, já lhes foi pago, pois querem mais. Para não falar nos mercados, que buscam refúgio no dólar, embora não se tenha crise cambial à vista.

Estamos assistindo a uma corrida contra o tempo. Repito o já sabido e dito: as forças dinâmicas do quadro brasileiro vêm sendo a crise econômica e a operação Lava-jato. Só que o desdobramento de uma, a judicial, independe da outra, que, entretanto, sofre suas consequências. Não obstante, as lideranças políticas, a começar pela maior da república, parecem assistir conformadas ao mergulho do país no poço fundo da crise pela falta de confiança.

Daí a angústia: há urgência para que as decisões políticas nos permitam enfrentar os desafios econômicos e sociais. Estes são de magnitude: os compromissos legais de financiamento a serem cumpridos pelo governo, seja por diretivas constitucionais, seja por mandamentos legais, seja por compromissos políticos assumidos não cabem no orçamento e o país não quer pagar mais impostos. Não quer porque não vê que deles resulte melhoria palpável para as contas públicas nem para a população, dadas a continuidade da gastança, a incompetência da gestão e a corrupção.

A quadratura deste círculo exige a reconstrução da confiança perdida. Daí a corrida contra o tempo. O mandato ainda dura três anos e pouco e o tempo urge. Ou bem a Presidente reage (e vê-se que não tem gás para tanto), ou ela é “renunciada”. Mesmo que se cogite de impedimento, este está limitado pelo decorrer de prazos legais. Haverá tempo? Como conciliar, sempre dentro da Constituição, as urgências da economia e da vida com a morosidade dos tempos políticos?

Não tenho a vara de condão para me levar ao futuro. Arrisco dizer, no entanto, que nessa pugna entre os meneios político-partidários e as necessidades concretas das pessoas e das empresas, chegará o momento de acelerar decisões. Talvez um anjo perverso aconselhe à Presidente: entregue logo sua alma aodiabo, entre mais fundo no “toma lá, dá cá” e salve seu mandato. Pode até conseguir, mas valerá a pena? E acaso isso modifica a dança do país à beira do abismo? Quanto antes os mais responsáveis percebam que ou agem ou serão tragados pela voragem da crise, melhor. Ainda há tempo. Pouco, contudo.

(*) Fernando Henrique Cardoso foi presidente da República entre 1995 e 2002. Artigo publicado nos jornais “O Estado de São Paulo”, “O Globo” e “El País” em 5/10/15.

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5 outubro, 2015 Artigosblog Sem commentários »

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