“Acabar com a desigualdade não é tudo”


Acabar com a desigualdade não é tudo; os maus exemplos no comportamento político têm um viés de “democracia popular”; os laços com o corporativismo são fortes, significam um retrocesso e “não são um bom manto para a democracia”. A síntese é acrescida da percepção de que “há abuso de poder político” e foi feita pelo ex-presidente Fernando Henrique Cardoso (1995-2002). Ele diz que o presidente Luiz Inácio Lula da Silva fez uma “assombrosa conversão ao passado”.

A seguir, os principais trechos da entrevista.

O sr. não acha que os exageros retóricos do presidente Lula vão além da circunstância eleitoral e podem estar desligando da tomada os aparelhos da democracia?

Sinceramente, não acho que o presidente Lula tenha uma estratégia nessa direção. Acho que a democracia tem raízes fortes no País, a sociedade é muito diversificada, a sociedade civil é mais autônoma do que se pensa, as empresas são poderosas, a mídia é poderosa. Não acho que o Lula tenha um projeto para cercear a democracia. O que ele tem é uma prática que, às vezes, excede o limite. E, quando isso acontece, eu me manifesto. A democracia não é um fato dado, é uma constante luta. Se a gente começa a fechar os olhos às pequenas transgressões, se elas vão se acumulando, isso tudo distorce o sentido das coisas.

Há algum problema na origem da nossa cultura política?

Sim, a nossa cultura política não é democrática. Nós aceitamos a transgressão com mais facilidade, nós aceitamos a desigualdade perante a lei, para não falar das outras desigualdades aceitas com mais facilidade ainda. Você tem um arcabouço democrático, mas o espírito da democracia não está consolidado.

E de quem é a culpa?

Não é de ninguém. Mas a responsabilidade para não quebrar esse arcabouço e reforçar o espírito da democracia é de quem tem voz pública. O presidente da República é responsável porque a conduta dele, no bom e no mau sentido, é tomada como exemplar. Portanto, ninguém é culpado, mas há responsáveis.

De que maneira explícita pode então ser atribuída uma cota de responsabilidade nesse processo ao presidente Lula?

Uma das coisas que mais me surpreendeu na trajetória política do presidente Lula foi a absorção por ele do que há de pior na cultura do conservadorismo, do comportamento tradicional. Ele simplesmente não inovou na política.

Dê exemplos.

O Lula adotou o clientelismo. Veja o caso do Amapá, onde o presidente Lula pede voto no fulano e fulano porque é amigo. Depois se descobre que o fulano está envolvido em escândalos, mas aí desenrola-se uma mistificação dizendo que nunca se puniu tanto como no governo dele. Isso é um comportamento absolutamente tradicional. Desde quando passou a mão na cabeça dos aloprados, o critério é sempre esse. No fundo, o Lula regrediu ao Império, aplicando a regra do “aos inimigos a lei, aos amigos a lei”. Ele não inovou do ponto de vista político, mas poderia ter inovado.

O sr. esperava um presidente Lula mais democrático, mas está apontando traços caudilhescos no comportamento dele.

O PT quando foi criado se opunha ao corporativismo herdado do fascismo e de Getúlio Vargas. No poder, o que vemos é que ele ampliou esse corporativismo. O PT trata esse corporativismo como se fosse um movimento da sociedade, quando nós estamos diante da ligação de grupos corporativistas ao Estado e o controle desses grupos pelo Estado.

Responda “sim” ou “não” a esta pergunta: Lula tem alguma tentação a cultivar uma variante para a democracia popular?

Sim.

Explique a resposta.

Lula não tem esse propósito, mas a recorrência do linguajar político e a forma de agir levam à crença de que o que vale é ter maioria. E democracia popular é o quê? A democracia é mais do que ter maioria, o que é conquistado à força pelas ditas democracias populares. Democracia também é respeito à lei, respeito à Constituição, respeito às minorias e à diversidade. Tudo isso é obscurecido nas democracias populares, onde se entende que, se você tem a maioria, você tem tudo e pode tudo. Tem o direito de fazer o que bem entender. O presidente Lula não pensa em fazer isso, mas essas são as consequências do comportamento político que ele tem. Precisa ter limites.

Concretamente, que tipo de limite deveria ser imposto ao presidente Lula?

Não se pode, por exemplo, ver o presidente, todos os dias, jogar o seu peso político na campanha eleitoral. E vem agora uma senhora recém-empossada como ministra-chefe da Casa Civil (N.R.: Erenice Guerra, que caiu na quinta-feira, um dia depois da gravação desta entrevista) acusar o principal candidato da oposição, o José Serra, de “aético”. Acusa por quê? Porque o candidato está protestando contra a violação do sigilo fiscal de sua família. Ela não tem expressão política alguma, mas baseia a acusação no quê? No princípio de que quem pode e quem não pode se sacode.

O sr. foi surpreendido com o discurso do “nunca antes neste País” do presidente Lula?

De alguma maneira, sim, mas nem tanto. O comportamento do Lula, mesmo no tempo de líder da oposição, sempre foi de uma pessoa loquaz, fácil de apreender as circunstâncias políticas, muito mais tático do que estratégico. Ele falou em “metamorfose ambulante” e isso explica bem o seu estilo e caracteriza bem o seu traço de conservadorismo.

Qual foi, então, a sua grande surpresa com Lula?

Achei que ele fosse mais inovador, capaz de deixar uma herança política democrática, mostrando que o sentimento popular, a incorporação da massa à política e a incorporação social podem conviver com a democracia, não pensar que isso só pode ser feito por caudilhos como Perón, Chávez etc. Essa é, aliás, a imagem que o mundo tem do Lula, que ele está incorporando os excluídos – o que já vinha do meu governo, a partir da estabilização econômica, mas é verdade que ele acelerou. Mas Lula está a todo o instante desprezando o componente democrático para ficar na posição de caudilho.

O que está na origem dessa tentação?

Na Europa, já não é mais assim, mas em alguns lugares ainda se acha que acabar com a desigualdade é tudo, que vale tudo para acabar com a desigualdade. Valia até apoiar o regime stalinista, o que Lula nunca foi. O que ele tinha de inovador é que o PT falava de democracia, um lado que está sendo esquecido. Nunca disse uma palavra forte em favor dos direitos humanos. Pode, perfeitamente, dizer que o caso nuclear do Irã não pode servir para atacar o país, lembrar o Iraque, mas, ao mesmo tempo, tem de ter uma palavra forte em defesa de uma mulher que pode morrer apedrejada.

O sr. já disse que o governo Lula tem realizações próprias suficientes para não precisar ser “mesquinho” e usar esse “nunca antes neste País”. Por exemplo?

O governo do presidente Lula atuou bem diante da crise financeira mundial (2008/2009). Isso não é fruto do passado, é fruto do presente. Nas outras áreas, ele deu bem continuidade, mas na crise podíamos ter naufragado e ele não deixou naufragar.

Outro exemplo de bom serviço prestado pelo governo Lula ao País?

Não sei qual a razão, mas o Lula acertou ao não engordar o debate sobre o terceiro mandato. Não sei se está ou não arrependido, mas o certo é que ele não engordou esse debate.

Em compensação, entrou na campanha com se estivesse disputando o terceiro mandato.

E não precisava. Ele podia atuar dentro da regras democráticas, mas está usando o poder político para forçar situações eleitorais. Há até um movimento em que ele se envolve para derrotar senadores da oposição, parece um ato de vingança porque não gostou da atuação deles no parlamento.

A jornalista e colunista do Estado Dora Kramer falou, há dias, de uma “academia inativa por iniciativa própria”. É isso?

A frase pode ser um pouco forte, tem muito intelectual opinando, mas a academia está muito distante da vida, produzindo análises vazias. Lidam mais com conceitos do que com a realidade. Falam muito sobre livros, em vez de falar e escrever sobre o processo da vida. Houve, sim, um afastamento da academia desses desafios. A situação do País é boa, a começar pela situação econômica e social, e isso paralisa muita gente, mas a academia é que tem de manter o senso crítico, alertar, dizer o que está acontecendo e que merece reparos.

Entrevista ao jornalista Rui Nogueira, publicada na edição de 19 de setembro de 2010 do jornal “O Estado S. Paulo”

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3 novembro, 2010 Sem categoria Sem commentários »

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